sexta-feira, 9 de agosto de 2019

É PERFEITAMENTE POSSÍVEL TER MORAL SUPERIOR E SER ÉTICO SEM CRER EM DEUS*

*047. É PERFEITAMENTE POSSÍVEL TER MORAL SUPERIOR E SER ÉTICO SEM CRER EM DEUS*

```É claro que o mistério cósmico não nos ajuda em nada na preservação da ordem social. As pessoas muitas vezes alegam que temos de acreditar num deus que dê aos humanos algumas leis muito concretas, se não a moralidade vai desaparecer e a sociedade desmoronar num caos primevo.```

```Certamente é verdade que a crença em deuses foi vital para várias ordens sociais, e que às vezes teve consequências positivas. De fato, a mesma religião que inspira ódio e intolerância em algumas pessoas inspira amor e compaixão em outras. Por exemplo, no início da década de 1960 o reverendo metodista Ted McIlvenna tomou consciência da difícil situação da população LGBT em sua comunidade. Começou a investigar a situação de gays e lésbicas na sociedade em geral e, em maio de 1964, convocou um pioneiro diálogo de três dias entre clérigos e ativistas no White Memorial Retreat Center, na Califórnia. Os participantes subsequentemente estabeleceram o Conselho sobre Religião e o Homossexual (CRH), que além dos ativistas incluía ministros metodistas, episcopais, luteranos e da Igreja Unida de Cristo. Foi a primeira organização americana que ousou empregar a palavra “homossexual” em seu título oficial.```

```Nos anos seguintes, as atividades do CRH iam desde organizar festas a fantasia até entrar com ações legais contra discriminação e perseguição injustas. O CRH tornou-se a semente dos movimentos pelos direitos dos gays na Califórnia. O reverendo McIlvenna e outros homens de Deus que se juntaram a ele estavam bem conscientes das injunções bíblicas contra a homossexualidade. Mas pensaram que era mais importante ser fiel ao espírito misericordioso de Cristo do que à palavra estrita da Bíblia.```

```Embora deuses possam nos inspirar a agir com compaixão, a fé religiosa não é condição necessária para o comportamento moral. A ideia de que precisamos de um ser sobrenatural que nos faça agir moralmente pressupõe que existe algo sobrenatural na moralidade. Mas por quê? A moralidade, de qualquer tipo, é natural. Todos os mamíferos sociais, de chimpanzés a ratos, têm códigos éticos que limitam coisas como roubo e assassinato. Entre humanos, a moralidade está presente em todas as sociedades, apesar de nem todas acreditarem no mesmo deus, ou em qualquer deus. Os cristãos agem com caridade mesmo sem acreditar no panteão hindu. Os muçulmanos dão valor à honestidade apesar de rejeitar a divindade de Cristo, e países seculares como a Dinamarca e a República Tcheca não são mais violentas do que países devotos como o Irã e o Paquistão.```

```Moralidade não quer dizer “cumprir os mandamentos divinos”. Quer dizer “diminuir o sofrimento”. Daí que, para agir moralmente, não é preciso acreditar em nenhum mito ou narrativa. Só é necessário desenvolver uma profunda noção do que é sofrimento. Se você souber que uma ação causa um sofrimento desnecessário a você e a outros, você naturalmente se absterá de empreendê-la. Assim mesmo, pessoas assassinam, estupram e roubam porque só têm uma noção superficial da infelicidade que isso causa. Estão obcecadas em satisfazer sua paixão ou ganância imediatas, sem se preocupar com o impacto sobre os outros — ou mesmo o impacto sobre elas mesmas a longo prazo. Até mesmo inquisidores, que deliberadamente infligem o máximo de sofrimento possível em sua vítima, usam técnicas variadas de dessensibilização e de sumanização para se distanciarem daquilo que estão fazendo. Poder-se-ia objetar que todo humano naturalmente busca evitar sentir-se um miserável, mas por que deveria um humano importar-se com a miséria dos outros, a menos que algum deus exija isso? Uma resposta óbvia é que os humanos são animais sociais, e daí que sua felicidade depende em grande medida de seus relacionamentos com outros. Sem amor, amizade e comunidade, quem poderia ser feliz? Se você vive uma vida solitária e centrada em você mesmo, é quase certo que se sentirá um miserável. Assim, no mínimo, para ser feliz você precisa se importar com sua família, seus amigos e os membros de sua comunidade.```

```E quanto, então, a quem é totalmente estranho? Por que não assassiná-los e tomar suas posses para enriquecer a mim e a minha tribo? Muitos pensadores construíram complexas teorias sociais, explicando por que no longo prazo esse comportamento é contraproducente. Você não gostaria de viver numa sociedade onde estranhos são rotineiramente roubados e assassinados. Não só porque você estaria em perigo como porque perderia o benefício de coisas como comércio, que depende de haver confiança entre estranhos. Comerciantes normalmente não frequentam antros de ladrões. É por isso que teóricos seculares da antiga China à moderna Europa têm justificado a regra de ouro que diz “não faça aos outros o que não quer que façam a você”.```

```Mas na verdade não precisamos dessas teorias todas para encontrar um fundamento natural para a compaixão. Esqueça o comércio por um momento. Num nível muito mais imediato, ferir os outros fere a mim também. Todo ato violento no mundo começa com um desejo violento de alguém, o que perturba a paz e a felicidade da própria pessoa antes de perturbar a paz e a felicidade de qualquer outra. Assim, raramente alguém rouba a menos que tenha primeiro desenvolvido muita ganância e inveja. Pessoas normalmente não assassinam, a menos que primeiro tenham alimentado raiva e ódio. Emoções como ganância, inveja, raiva e ódio são muito desagradáveis. Não se pode ter alegria e harmonia quando se está espumando de raiva ou inveja. Daí que antes que você assassine alguém, sua raiva já matou sua própria paz de espírito.```

```Na verdade, você pode ficar espumando de raiva durante anos, sem nunca assassinar o objeto de seu ódio. Nesse caso você não terá ferido nenhuma outra pessoa, mas terá ferido a si mesmo. Portanto, o seu próprio interesse — e não a ordem de algum deus — é que deveria induzir você a fazer alguma coisa quanto a sua raiva. Se você se livrar totalmente dela, vai se sentir muito melhor do que se assassinar um inimigo.```

```Para algumas pessoas, uma forte crença num deus misericordioso que nos manda oferecer a outra face pode ajudar a dominar a raiva. Essa tem sido uma enorme contribuição da crença religiosa à paz e à harmonia do mundo. Infelizmente, para outras pessoas a crença religiosa na verdade incita e justifica sua raiva, em especial se alguém ousa insultar seu deus ou ignorar suas vontades. Assim, o valor do deus legislador depende em última análise do comportamento de seus devotos. Se agirem bem, podem
acreditar em tudo o que queiram. Da mesma forma, o valor dos ritos religiosos e dos lugares sagrados depende do tipo de sentimentos e comportamentos que eles inspiram. Se frequentar um templo faz a pessoa experimentar paz e harmonia, isso é maravilhoso. Mas, se um determinado templo causa violência e conflitos, para que precisamos dele? É claramente um templo disfuncional. Assim como não faz sentido tentar salvar uma árvore doente que produz espinhos em vez de frutos, tampouco faz sentido lutar por um templo defeituoso que produz inimizade e não harmonia.```

```Não frequentar templos e não acreditar em nenhum deus também é uma opção viável. Como provaram os séculos recentes, não precisamos invocar o nome de Deus para viver uma vida de moralidade. O secularismo pode nos prover de todos os valores dos quais precisamos.```

_Yuval Harari no Livro 21 Lições Para o Século 21_

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