sexta-feira, 9 de agosto de 2019

CRENTES DÃO A FALTA DE CONHECIMENTO O NOME DE DEUS*

*026. CRENTES DÃO A FALTA DE CONHECIMENTO O NOME DE DEUS*

```Deus existe? Isso depende de que Deus se tem em mente. O mistério cósmico ou o legislador do mundo? Às vezes, quando as pessoas falam de Deus, elas estão falando de um enigma espantoso, sobre o qual não sabemos absolutamente nada. Invocamos esse Deus misterioso para explicar as mais profundas charadas do cosmos. Por que existe algo, em vez de nada? O que moldou as leis fundamentais da física? O que é a consciência, e de onde ela vem? Não temos resposta para essas perguntas, e damos à nossa ignorância o grandioso nome de Deus. E sua característica mais fundamental é que não somos capazes de dizer algo concreto sobre Ele. Esse é o Deus dos filósofos; o Deus que mencionamos quando estamos sentados em torno de uma fogueira tarde da noite tentando compreender o sentido da vida.```

```Em outras ocasiões as pessoas veem Deus como um legislador inflexível mundano, sobre quem sabemos até demais. Sabemos exatamente o que Ele pensa sobre moda, alimento, sexo e política, e invocamos esse Homem Bravo no Céu para justificar uma infinidade de regulamentos, decretos e conflitos. Ele fica aborrecido quando mulheres usam blusas de mangas curtas, quando dois homens fazem sexo um com o outro ou quando adolescentes se masturbam. Algumas pessoas dizem que Ele não gosta que bebamos álcool, nunca, enquanto segundo outras Ele exige que tomemos vinho toda noite de sexta-feira ou toda manhã de domingo. Bibliotecas inteiras têm sido escritas para explicar com os mais minuciosos detalhes o que Ele quer e o que Ele abomina. A característica mais fundamental desse legislador mundano é que somos capazes de dizer coisas extremamente concretas sobre Ele. Esse é o Deus dos cruzados e dos jihadistas, dos inquisidores, dos misóginos e dos homofóbicos. Esse é o Deus que mencionamos quando estamos em volta de uma pira ardente, atirando pedras e xingamentos nos hereges postos ali para queimar. Quando se pergunta a crentes se Deus realmente existe, eles muitas vezes começam a falar dos mistérios enigmáticos do universo e dos limites da compreensão humana. “A ciência não é capaz de explicar o Big Bang”, exclamam, “portanto isso deve ser obra de Deus.” E, como um mágico que engana o público substituindo uma carta por outra, o crente rapidamente substitui o mistério cósmico por um legislador mundano. Após ter dado o nome de “Deus” aos segredos desconhecidos do cosmos, eles o usam para de algum modo condenar biquínis e divórcios. “Nós não compreendemos o Big Bang — portanto você tem de cobrir os cabelos em público e votar contra o casamento gay.” Não só não existe conexão lógica entre as duas coisas como na verdade elas são contraditórias. Quanto mais profundos são os mistérios do universo, menos provável é que o que quer que seja responsável por eles dê qualquer importância aos códigos de vestimenta feminina ou ao comportamento sexual humano.```

```O elo que falta entre o mistério cósmico e o legislador mundano geralmente é fornecido por algum livro sagrado. O livro está cheio dos mais triviais regulamentos, mas assim mesmo é atribuído ao mistério cósmico. O criador do espaço e do tempo foi supostamente quem o compôs, mas deu-se o trabalho de nos esclarecer sobretudo quanto a alguns rituais obscuros e tabus alimentares. Na verdade, não temos nenhuma evidência de que a Bíblia, ou o Corão, ou o Livro dos Mórmons ou os Vedas ou qualquer outro livro sagrado foram compostos pela força que determinou que energia é igual a massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado, e que prótons têm 1837 vezes mais massa que elétrons. Até onde vai nosso conhecimento científico, todos esses textos sagrados foram escritos por imaginativos Homo sapiens. São apenas histórias inventadas por nossos antepassados para legitimar normas sociais e estruturas políticas.```

```Eu nunca deixei de me perguntar sobre o mistério da existência. Mas nunca compreendi o que isso tem a ver com as minuciosas leis do judaísmo, cristianismo ou hinduísmo. Essas leis decerto foram muito úteis no estabelecimento e na preservação da ordem social durante milhares de anos. Porém não são, nisso, fundamentalmente diferentes das leis de Estados e instituições seculares.```

```O terceiro dos Dez Mandamentos bíblicos instrui os humanos a nunca fazer uso indevido do nome de Deus. Muitos entendem isso como uma proibição de pronunciar o nome explícito de Deus (como na famosa cena do Monty Python: “Se você disser Iahweh…”), mas talvez o sentido mais profundo desse mandamento seja que nunca devemos usar o nome de Deus para justificar nossos interesses políticos, nossas ambições econômicas ou nossos ódios pessoais. Quando uma pessoa odeia alguém, diz: “Deus odeia ele”; quando cobiça um pedaço de terra: “Deus quer isso”. O mundo seria um lugar melhor se cumpríssemos o terceiro mandamento com mais devoção. Você quer travar uma guerra com seus vizinhos e roubar suas terras? Deixe Deus fora disso, e arranje outra desculpa.```

```No fundo, é uma questão de semântica. Quando uso a palavra “Deus” penso no Deus do Estado Islâmico, das Cruzadas, da Inquisição e nas faixas “Deus odeia bichas”. Quando penso no mistério da existência, prefiro usar outras palavras, para evitar confusão. E diferentemente do Deus do Estado Islâmico e das Cruzadas — que se importa muito com nomes e acima de tudo com Seu santíssimo nome — o mistério da existência não dá a mínima para os nomes que nós, primatas, lhe damos.```

_Yuval Harari no Livro 21 Lições Para o Século 21_

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