terça-feira, 30 de julho de 2019

QUANDO ELES SE TORNAM NÓS!

036. QUANDO ELES SE TORNAM NÓS!


Os impérios desempenharam um papel decisivo em amalgamar muitas pequenas culturas em um número menor de culturas maiores. Ideias, pessoas, mercadorias e tecnologia se disseminam mais facilmente dentro das fronteiras de um império do que em uma região politicamente fragmentada. Com frequência, eram os próprios impérios que disseminavam deliberadamente ideias, instituições, costumes e normas. Uma razão era tornar a vida mais fácil para eles mesmos. É difícil governar um império em que cada pequeno distrito tem seu próprio conjunto de leis, sua própria forma de escrever, sua própria língua e seu próprio dinheiro. A padronização era uma vantagem para os imperadores.

Uma segunda razão, igualmente importante, pela qual os impérios disseminavam ativamente uma cultura comum era obter legitimidade. Pelo menos desde a época de Ciro e de Qín Shĭ Huángdì, os impérios justificaram suas ações – fosse a construção de estradas ou o derramamento de sangue – como necessárias para disseminar uma cultura superior da qual os conquistados se beneficiariam ainda mais que os conquistadores.

Os benefícios às vezes eram notáveis – aplicação de leis, planejamento urbano, padronização de pesos e medidas – e outras vezes, questionáveis – impostos, serviço militar obrigatório, culto ao imperador. Mas a maior parte das elites imperiais acreditava firmemente que estava trabalhando para o bem-estar geral dos habitantes do império. A classe dominante chinesa tratava os vizinhos de seu país e seus súditos estrangeiros como bárbaros miseráveis a quem o império deveria levar os benefícios da cultura. O Mandato do Céu foi concedido ao imperador não para explorar o mundo, mas para educar a humanidade. Os romanos também justificaram seu domínio argumentando que estavam concedendo paz, justiça e refinamento aos bárbaros. Os alemães selvagens e os gauleses pintados viviam na imundície e na ignorância até que os romanos os adestraram com a lei, os lavaram em casas de banho públicas e os aprimoraram com a filosofia. O Império Máuria, no século III a.C., adotou como missão a disseminação dos ensinamentos de Buda a um mundo ignorante. Os califas muçulmanos receberam uma ordem divina para difundir a revelação do Profeta, de forma pacífica, se possível, mas com o uso da espada, se necessário. Os impérios espanhol e português proclamaram que não eram riquezas o que procuravam nas Índias e na América, e sim adeptos para a fé verdadeira. O sol nunca se punha na missão britânica de difundir as mensagens do liberalismo e do livre comércio. Os soviéticos se sentiram obrigados a facilitar a inexorável marcha histórica do capitalismo rumo à utópica ditadura do proletariado. Hoje, muitos norte-americanos sustentam que seu governo tem o dever moral de levar aos países do Terceiro Mundo os benefícios da democracia e dos direitos humanos, mesmo que estes sejam entregues por mísseis de cruzeiro e F-16s.

As ideias culturais disseminadas pelo império raramente eram uma
criação exclusiva da elite dominante. Uma vez que a visão imperial tende a ser, por natureza, universal e inclusiva, foi relativamente fácil para as elites imperiais adotar ideias, normas e tradições onde quer que as encontrassem, em vez de se ater com fanatismo a uma única tradição conservadora. Embora alguns imperadores procurassem purificar suas culturas e retornar ao que consideravam suas raízes, a maior parte dos impérios gerou civilizações híbridas que absorveram muito dos povos dominados. A cultura imperial de Roma era grega quase tanto quanto romana. A cultura imperial abássida era parte persa, parte grega e parte árabe. A cultura imperial mongol era uma imitação da chinesa. No império dos Estados Unidos, um presidente norte-americano com sangue queniano pode comer pizza italiana enquanto assiste a seu filme preferido, Lawrence da Arábia, um épico britânico sobre a rebelião árabe contra os turcos.

Não que esse caldeirão cultural tenha tornado o processo de assimilação mais fácil para os conquistados. A civilização imperial pode muito bem ter absorvido inúmeras contribuições de diversos povos conquistados, mas o resultado híbrido ainda era estranho à grande maioria. O processo de assimilação era, com frequência, doloroso e traumático. Não é fácil abrir mão da tradição local e familiar, assim como é difícil e estressante entender e adotar uma nova cultura. Pior ainda, mesmo quando os povos dominados adotavam a cultura imperial com sucesso, podia levar décadas, se não séculos, até que a elite os aceitasse como parte de “nós”. As gerações que viviam entre a conquista e a aceitação eram deixadas ao relento. Já haviam perdido sua querida cultura local, mas não tinham permissão para participar em condição de igualdade no mundo imperial: pelo contrário, a cultura adotada continuava a vê-las como bárbaros.

Imagine um ibérico de boa ascendência vivendo um século antes da queda da Numância. Ele fala seu dialeto celta nativo com seus pais, mas aprendeu um latim impecável, com um sotaque muito leve, porque é necessário para conduzir seus negócios e lidar com as autoridades. Alimenta a predileção de sua esposa por bugigangas enfeitadas, mas fica um pouco constrangido porque ela, como outras mulheres locais, guarda esse resquício do gosto celta – ele preferiria que ela adotasse a simplicidade das joias usadas pela esposa do governante romano. Ele mesmo usa túnicas romanas e, graças ao sucesso como comerciante de gado, devido em grande parte à sua experiência com o complicado direito romano, conseguiu construir um casarão em estilo romano. Contudo, mesmo sendo capaz de recitar o Livro III das Geórgicas, de Virgílio, de memória, os romanos ainda o tratam como um semibárbaro. Ele percebe, com frustração, que nunca receberá uma nomeação para o governo ou terá acesso aos melhores assentos no anfiteatro.

No fim do século XIX, muitos indianos bem instruídos aprenderam a mesma lição com os mestres britânicos. Uma história famosa é a de um indiano ambicioso que dominou as complexidades da língua inglesa, fez aulas de dança ocidental e até se acostumou a comer com garfo e faca. Equipado com seus novos modos, viajou à Inglaterra, estudou direito na University College London e se tornou advogado. Mesmo assim, esse jovem homem das leis, aprumado em seu terno e gravata, foi jogado para fora de um trem na colônia britânica da África do Sul por insistir em viajar na primeira classe em vez de se acomodar na terceira, onde homens “de cor” como ele deviam viajar. Seu nome era Mohandas Karamchand Gandhi.

Em alguns casos, o processo de aculturação e assimilação acabou rompendo as barreiras entre os recém-chegados e a antiga elite. Os conquistados já não viam o império como um sistema estrangeiro de ocupação, e os conquistadores passaram a enxergar seus conquistados como iguais. Dominantes e dominados passaram a ver “eles” como “nós”. Todos os súditos de Roma, depois de séculos de dominação imperial, acabaram recebendo a cidadania romana. Não romanos ascenderam e passaram a ocupar os cargos mais altos entre os oficiais das legiões romanas e foram nomeados ao senado. Em 48, o imperador Cláudio admitiu no senado vários gauleses notáveis cujos “costumes, cultura e laços de matrimônio se misturaram com os nossos”, conforme observou em um discurso. Senadores arrogantes protestaram contra a inclusão desses ex-inimigos no cerne do sistema político romano. Cláudio os recordou de uma verdade inconveniente. A maioria das famílias senatoriais descendia de tribos italianas que um dia lutaram contra Roma e, mais tarde, obtiveram cidadania romana. Na verdade, conforme recordou o imperador, sua própria família era de ascendência sabina.

Durante o século II, Roma foi governada por uma linhagem de
imperadores nascidos na Península Ibérica, em cujas veias provavelmente corriam pelo menos algumas gotas de sangue ibérico. Os reinados de Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco Aurélio geralmente são considerados a era de ouro do império. Depois disso, todas as barreiras étnicas foram derrubadas. O imperador Lúcio Sétimo Severo (193-211) descendia de uma família púnica da Líbia. Heliogábalo (218-222) era sírio. O imperador Filipe (244-249) era conhecido informalmente como “Filipe, o Árabe”. Os novos cidadãos do império adotaram a cultura imperial romana com tanto entusiasmo que, durante séculos, e até milênios, depois que o império ruiu, continuaram a falar a língua do império, acreditar no Deus cristão que o império havia adotado de uma de suas províncias levantinas e viver segundo as leis do império.

Um processo similar ocorreu no Império Árabe. Quando foi estabelecido, em meados do século VII, era baseado em uma nítida divisão entre a elite dominante árabe-muçulmana e os subjugados egípcios, sírios, iranianos e berberes, que não eram nem árabes, nem muçulmanos. Muitos dos súditos do império adotaram gradualmente a fé muçulmana, a língua árabe e uma cultura imperial híbrida. A antiga elite árabe via esses arrivistas com profunda hostilidade, temendo perder seu status e identidade singulares. Os convertidos frustrados clamavam por uma parte equivalente no império e no mundo islâmico. Com o tempo, conseguiram. Egípcios, sírios e mesopotâmios começaram a ser cada vez mais vistos como “árabes”. Os árabes, por sua vez – fossem os árabes “autênticos” da Arábia ou os recém-cunhados do Egito e da Síria –, passaram a ser cada vez mais dominados por muçulmanos não árabes, em particular iranianos, turcos e berberes. O grande sucesso do projeto imperial árabe foi que a cultura imperial que criou foi adotada entusiasticamente por inúmeros povos não árabes, que continuaram a preservá-la, desenvolvê-la e disseminá-la – mesmo depois que o império original ruiu e os árabes, como grupo étnico, perderam seu domínio.

Na China, o sucesso do projeto imperial foi ainda mais absoluto. Por mais de 2 mil anos, uma série de grupos étnicos e culturais primeiramente considerados bárbaros foram integrados com sucesso à cultura imperial chinesa e se tornaram chineses Han (assim denominados devido ao Império Han, que governou a China de 206 a.C. a 220). A maior conquista do império chinês é continuar firme e forte, apesar de ser difícil enxergá-lo como império, exceto em áreas remotas como o Tibete e Xinj iang. Mais de 90% da população da China se considera Han e é reconhecida como tal.

Podemos entender o processo de descolonização das últimas décadas de forma similar. Durante a era moderna, os europeus conquistaram grande parte do globo com o pretexto de disseminar uma cultura ocidental superior. Foram tão bem-sucedidos que, pouco a pouco, bilhões de pessoas começaram a adotar partes significativas dessa cultura. Indianos, africanos, árabes, chineses e maoris aprenderam francês, inglês e espanhol. Começaram a acreditar em direitos humanos e no princípio da autodeterminação e adotaram ideologias ocidentais como liberalismo, capitalismo, comunismo, feminismo e nacionalismo.

Durante o século XX, grupos locais que haviam adotado valores ocidentais reivindicaram igualdade em relação a seus conquistadores europeus em nome desses mesmos valores. Muitas lutas anticolonialistas foram travadas sob as bandeiras da autodeterminação, do socialismo e dos direitos humanos, todas legados ocidentais. Assim como os egípcios, os iranianos e os turcos adotaram e adaptaram a cultura imperial que herdaram dos conquistadores árabes originais, também os indianos, africanos e chineses da atualidade aceitaram grande parte da cultura imperial de seus antigos soberanos ocidentais, ao mesmo tempo que procuraram moldá-la de acordo com suas necessidades e tradições.


Yuval Harari no Livro Sapiens - Uma Breve História da Humanidade

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